Maior desastre em uma boate brasileira completa uma década nesta sexta-feira e vira tema de série na Netflix
“Fique com esse CD para você ouvir. Ela era tão linda e cantava tão bem…Como estava feliz com a gravação das músicas…Minha filha tinha realizado um sonho e, agora, ela foi tirada de nós…”, disse o pai de uma jovem, vítima da tragédia.
Muitos sonhos despedaçados e uma cidade inteira em luto, esmagada pela dor e o sofrimento. O dia 27 de janeiro de 2013 trouxe um trauma coletivo pelo massacre de tantos jovens, tantas vidas que pouco puderam ser vividas. O silêncio pairou no ar, revelando rostos abatidos e um misto de revolta e tristeza pelo ocorrido.
Dor, angústia, sentimentos de culpa, raiva, confusão mental e impotência foram alguns dos sintomas e emoções observados. Relatos de histórias de vidas e de momentos anteriores à tragédia, das marcas deixadas nas paredes, das tentativas de fuga no local e de muitas perguntas, como: “Por que alguns voltaram para salvar a pessoa amada, mas não retornaram?”.
Esse foi o cenário que encontrei há 10 anos, junto de outros psicólogos, no serviço de assistência psicológica emergencial aos sobreviventes, familiares e amigos das vítimas do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS).
Em todo lugar havia pessoas precisando de suporte, pois era comum os habitantes conhecerem pelo menos alguém envolvido na tragédia, a dor de um era a dor do outro. A comoção foi geral e, por isso, as intervenções aconteceram de diferentes formas – a todo momento – por meio de busca ativa (visitas domiciliares) ou plantões no CAPS, UPA, UBS, Hospitais, Universidade, além dos rituais de encerramento, como a missa de sétimo dia e a homenagem feita às vítimas em frente à boate.
Os atendimentos psicológicos foram importantes fontes de ajuda, mas a solidariedade, união e o respeito envolveram a todos. Juntos, consoloram-se uns aos outros.
Lembrar essa data é recordar um dia de pesadelo, das cenas e lembranças traumáticas. É um momento em que se resgatam memórias afetivas de entes queridos e da saudade que ficou. Por isso, é importante conversarmos sobre alguns aspectos envolvidos no luto – como a perda de um filho. É necessário diferenciar o que é esperado de traumas tão dolorosos e as situações que necessitam de uma atenção específica e profissional, após um determinado período de observação.
O trauma psicológico pode ser entendido como uma experiência devastadora, inesperada e que pode oferecer risco de vida ou da integridade física para a própria pessoa ou pessoa próxima. Algumas reações comuns ao trauma são: medo exagerado da repetição de situações semelhantes ou mais graves; lembranças intrusivas; dificuldades com o sono, concentração e memória; reação de susto aumentada; irritabilidade; culpa irracional; reações autonômicas (palpitações, cansaço físico, reações emocionais exageradas) e hipervigilância. A culpa do sobrevivente aparece também. Como o próprio nome diz, a pessoa se sente culpada por ter sobrevivido, comparando a sua situação com a de outras pessoas.
Normalmente, uma intervenção psicológica logo após o incidente permite que os envolvidos direta ou indiretamente expressem o horror e o pânico decorrentes do evento. Nesse momento, é importante acolher e, em alguns casos, aplicar técnicas que aliviem a ansiedade (dificuldades na respiração), o desespero e a tentativa de fuga. Assim, as pessoas conseguem expressar as emoções associadas a percepções traumatogênicas. É comprovado que quanto mais precoce a pessoa recebe esse suporte psicológico (na fase de estresse agudo), é mais difícil que o caso evolua para um TEPT (transtorno de estresse pós traumático).
De acordo com o DSM-5, para caracterizar um TEPT, os sintomas devem persistir por mais de 1 mês e causar comprometimento funcional.
O luto pode ser entendido como um estado emocional pelo rompimento de um vínculo de amor (seja ele qual for), sendo caracterizado pelo período de enfrentamento da dor da perda. A psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross traz as 5 fases do luto, que são: a negação, que vem como uma proteção inconsciente a dor; a raiva, que pode se manifestar por meio de atitudes autodestrutivas; a barganha, que, na tentativa desesperada de aliviar a dor, a pessoa recorre a pensamentos como se pudesse reverter ou ter evitado tal situação; depressão, que envolve choro e dificuldade de retomar a vida normal; e, por último, a aceitação, em que a pessoa compreende a nova realidade, aceitando conviver com a perda.
É importante passar por todas as etapas e não querer acelerar o processo para que o enlutado tenha possibilidade de ressignificar o acontecimento. Rituais coletivos, em períodos ou datas específicas, podem trazer significado e conforto mútuo. Uma rede de apoio também é fundamental, pois através dos diversos recursos a pessoa pode encontrar novos motivos para viver e sorrir.
Autora: Ingryd Abrão
Diretora Operacional da ONG Núcleo Espiral, psicóloga clínica especialista em emergências e crises.