Escrito por Ana Cecília Pagliarini de Souza e Pablo César dos Santos, coordenadora e facilitador do programa Retocare do Núcleo Espiral, respectivamente
O Núcleo Espiral é uma associação sem fins lucrativos que atua na prevenção, assistência e educação contra a prática de violência. O início do Núcleo Espiral, com existência legal, deu-se em 2008. Seu trabalho é voltado, em especial, à criança e ao adolescente, mas atinge familiares, educadores, professores e também a comunidade onde se realizam os projetos, além de promover estudos e pesquisas em temas como trauma, violência e resiliência com o objetivo de desenvolver ações cada vez mais efetivas no combate à violência.
Será contado a seguir sobre o trabalho realizado com as crianças e adolescentes assistidos pelo Núcleo Espiral, efetivado pelo Programa Retocare, que acontece semanalmente em CCAs (Centro da Criança e do Adolescente) e MSE (Medida Socioeducativa).
O programa busca promover intervenções socioeducativas breves em grupos de crianças e adolescentes com abordagem corporal-simbólica, e tem a abrangência de ter trabalhado com aproximadamente 700 crianças/adolescentes.
O Retocare surgiu em 2003 e, desde então, tem contado com facilitadores que realizam um trabalho fundamental para que crianças e adolescentes tenham vivências diferentes daquelas que muitas vezes encontram em suas casas e em uma comunidade com grande vulnerabilidade social, possibilitando que assim se fortaleçam e tornem-se mais resilientes.
Junqueira e Deslandes (2003) vislumbram a resiliência como a capacidade do indivíduo de, em determinados momentos e de acordo com as circunstâncias, tolerar a adversidade não sucumbindo a ela, alertando para a necessidade de relativizar, em função do sujeito e do contexto, o aspecto de “superação” de eventos potencialmente causadores de estresse. Estaria atrelada à superação diante de uma dificuldade considerada como um risco, a possibilidade de construção de novos caminhos de vida e de uma forma de subjetivação a partir do enfrentamento de situações estressantes. Acreditam que o termo resiliência explica conceitualmente a possibilidade de superação num sentido dialético, o que representa não uma eliminação, mas uma ressignificação do problema. A partir de um ambiente lúdico e protegido, criado em conjunto entre facilitadores e crianças/adolescentes, os encontros se propõem a, através de atividades corporais, propiciar às crianças e adolescentes o autoconhecimento e conquistarem o acesso ao funcionamento do seu corpo, fortalecendo a capacidade de resiliência.
O trabalho tem início com um momento de participação ativa das crianças, as quais podem escolher os personagens, uma forma lúdica de se apresentar diferente do que estão acostumados, assumindo outra identidade. Segundo Comfort (2015) partindo da perspectiva de que vitimas de violência e trauma precoce buscam utilizar-se de fantasias como recurso em prol da manutenção da integridade individual, todos os participantes constroem um ritual para se transformarem em personagens, com o auxilio de dois facilitadores adultos, e o mesmo ritual é feito ao final do grupo. A partir deste momento em que crianças e adolescentes assumem outra identidade permite-se que sejam trazidos novos significados a experiências negativas, inicialmente sustentadas pela fantasia, e pode ser transposta para o cotidiano e baseadas em vivências positivas. Este também é o momento de construir as regras que irão utilizar nos próximos 11 encontros em grupo. Diante disso, as crianças podem se apropriar individualmente de algo que foi definido pelo coletivo, responsabilizando-se pelo que é permitido ou proibido, o que possibilita criar um senso de organização, comprometimento e sociabilidade.
Os encontros vão abordar as diferentes partes do corpo, a partir das atividades que surgem dos temas que serão trabalhados em grupo. Ao se trabalhar com atividades corporais com crianças e adolescentes vítimas de violência permite-se que uma nova relação com o corpo possa ser construída. Perceber a si mesmo e trabalhar o corpo em um ambiente acolhedor, possibilita que autoimagem, autoestima e relação positiva com o corpo sejam construídas de maneira saudável, promovendo a resiliência.
O contorno corporal, toques sutis feitos ao redor do corpo, realizado pelos facilitadores ao final de cada encontro possibilita que o toque tenha um significado de acolhimento e também a construção de uma relação de confiança, entre facilitador e criança/adolescente. Segundo Montagu (1988), o toque positivo pode trazer uma sensação de segurança e de pertinência.
Algo de extrema relevância que também é trabalhado nos grupos é o vínculo formado entre facilitadores e crianças/adolescentes. O facilitador tem a desafiadora missão de levar semanalmente para aquelas crianças em situação de vulnerabilidade social outra forma de se relacionar com os adultos. O contato que se inicia com entrevistas individuais, onde se aplicam questionários que buscam medir cuidados e violência sofrida, permitem que uma nova forma de relação aconteça ali, favorecendo a construção de uma relação permeada pelo afeto.
É esse afeto o elemento básico da função de facilitador do Núcleo Espiral: sem ele, é impossível que os objetivos do trabalho sejam atingidos. O distanciamento afetivo enrijece a atuação dos facilitadores e distancia as crianças, quando na verdade é necessária uma aproximação, e mais que isso, uma aproximação sensível, delicada e não violenta. Em alguns casos, o facilitador pode ser uma das poucas, senão única, figuras de afeto, para determinadas crianças; mais do que isso, muitas vezes ele é um dos poucos ao seu redor que não está se comunicando de forma violenta, mas sim afetiva, mostrando assim outras formas de se comunicar e se relacionar com o mundo. É o afeto, portanto, responsável pela formação do vínculo entre o facilitador e a criança, determinante para a efetividade do trabalho, para o processo de “ponte” da inadaptação e violência para a resiliência e não-violência. Em um contexto de tantas vulnerabilidades, o facilitador torna-se, muitas vezes, uma importante referência e/ou figura positiva para as crianças com as quais trabalha. Sendo assim, outra característica essencial de um facilitador é ter um olhar ampliado sobre a criança, que permita enxergar a criança como um indivíduo carregado de subjetividade e compreender os símbolos envolvidos em seu processo. É importante ainda vê-la como um sujeito em desenvolvimento, sujeito de sua própria história; isto é, mesmo em contextos de extrema vulnerabilidade, tem e pode desenvolver sua resiliência, ressignificar e transformar sua própria história. Portanto, o olhar cuidadoso e isento de preconceitos do facilitador não se apega a rótulos colocados outrora em uma criança, mas busca vê-la nas suas múltiplas dimensões, entendendo que todo comportamento da criança é carregado de símbolos, cheios de história, significados e razões de existir.
O trabalho, embasado nesses dois aspectos, afeto e olhar ampliado, traz como resultado quase que óbvio a transformação, pois são esses os elementos metamórficos. É desse lugar que a palavra “facilitador” mostra seu significado: aquele que busca facilitar o desenvolvimento da resiliência na criança, mostrando possibilidades e recursos positivos para se relacionar com o mundo para além das opções que a criança já tem.
A transformação, contudo, não atinge apenas a criança:também o facilitador envolvido no processo é alvo dessa mágica ocorrência. Se dá, desse modo, uma transformação dinâmica, uma troca mútua entre facilitador e criança.
É no decorrer e, sobretudo no fim do trabalho que é possível perceber o poder que as crianças têm no processo, muitas vezes maior que o do próprio facilitador: as crianças, sem uso de técnicas, sem formação, supervisão ou qualquer estudo e conhecimento científico produzem, nos facilitadores, uma imensa transformação, simplesmente como forma de gratidão ao trabalho realizado em a favor da resiliência delas e contra a violência.
Referências: COMFORT, Amana P. M. (et all) Resiliência e Trauma. In Amorim, S.; NEUMANN, M. M. (Org). Editora CRV, 2015. JUNQUEIRA, Maria de Fátima Pinheiro da Silva; DESLANDES, Suely Ferreira. (2003, janeiro/fevereiro). Resiliência e maus-tratos à criança. Cadernos de Saúde Pública, 19(1). Recuperado em 23 de fevereiro, 2009, da Scielo (Scientific Eletronic Library On Line): www.scielo.br MONTAGU, A. Tocar: o significado humano da pele. 7. Ed. São Paulo: Summus, 1988.